Luma Lopes Reis – Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão
Graduanda em Direito – Universidade Federal do Maranhão
E-mail: luma.reis@discente.ufma.com
RESUMO
Busca instruir acerca da possibilidade da obrigatoriedade da vacina, a fim de encontrar as justificativas que o ordenamento jurídico brasileiro oferece e em quais casos específicos, mediante o sopesamento entre direitos individuais e coletivos. O seguinte artigo foi elaborado por meio de revisão bibliográfica de doutrinas e a partir da ênfase na legislação brasileira, não deixando de contrastar com pontos relevantes da herança histórica. Assim, é alcançado com objetividade o entendimento acerca de temas como o interesse individual ou coletivo, poder de polícia do estado e seus respectivos limites quanto à aplicação da vacina.
Palavras-chave: Imunização. Vacina. Direitos e Interesses. Obrigatoriedade.
ABSTRACT
It seeks to instruct about the possibility of making the vaccine mandatory. In order to find the justifications that the Brazilian legal system offers and in which specific cases through the balancing between individual and collective rights. The following article was prepared through a bibliographic review of doctrines and from the emphasis on Brazilian legislation, while contrasting relevant points of historical heritage. Thus, it is achieved with objectivity the understanding about issues such as individual or collective interest, police power of the state and their respective limits regarding the application of the vaccine.
Keywords: Immunization. Vaccine. Rights and Interests. Obligatoriness.
1. INTRODUÇÃO
O direito sempre deve estar atualizado e integrado às dinâmicas políticas, sociais, econômicas e até morais, afinal seu objetivo é a harmonização da esfera social, por meio da tutela aos direitos individuais e/ou coletivos.
O fato é que, quando o direito não acompanha a realidade social e, diante da omissão ou mora legislativa, torna-se mais fácil enveredarmos por um caminho de irregularidades e incertezas.
Por isso, discutir sobre a obrigatoriedade da vacinação necessita de um árduo esforço, lembrando sempre que medidas extremas que ultrapassem os limites legais podem resultar na afronta aos direitos individuais e/ou coletivos.
Assim, ao retroagirmos ao ano de 1796, na descoberta da primeira vacina, por Edward Jenner, que objetivava combater a epidemia de varíola, já nos deparamos com dificuldades. Isso porque os movimentos antivacinação não são invenções das últimas décadas, afinal ações contrárias ao processo de imunização já se intensificaram ao longo no século XVIII, motivo pelo qual na Inglaterra promulgou-se uma lei que tornava a vacinação contra varíola obrigatória.
No Brasil, a narrativa não foi diferente: com a obrigatoriedade de imunização contra varíola, os movimentos se instalaram, resultando na mais conhecida como Revolta da Vacina (1904). À época, apenas aqueles que comprovassem estar em dia com a vacinação poderiam exercer alguns direitos como contratos de trabalho, certidões de casamento, autorizações para viagens e até mesmo possibilidade de matrículas em escolas.
2. UM PRETEXTO PARA ARBITRARIEDADE
Sabe-se, no entanto, que medidas do ius puniendi, direito de punir do Estado, foram utilizadas, desde aquela época. Porém, algumas atuações esgotaram o limite de imposições e por reflexo impulsionaram movimentos contra o processo de imunização. Na época, a sociedade, além do medo dos efeitos colaterais, temia também possível arbitrariedade estatal.
Convém, também, ressaltar que, mesmo antes da regulamentação da Lei da Vacina, já havia sido encaminhada ao Congresso listas assinadas por 15 mil pessoas contra a obrigatoriedade da imunização. A regulamentação só veio incendiar ainda mais os ânimos já exaltados (FIGUEIREDO, p. 3, 2011).
Dessa maneira, a obrigatoriedade da vacinação e os movimentos antivacinas, à época, foram moldados em aspectos de violência física ou coação armada por parte do Estado. O resultado: cerca de trinta mortos, em menos de duas semanas de conflitos e algumas centenas de feridos, alguns deportados e outros presos.
3. UM NOVO SÉCULO, MAS UMA VELHA HISTÓRIA
De forma surpreendente, a história se repete, “a história está repleta de estruturas e fenômenos recorrentes” (BEZERRA, Danieli Machado, 2014, apud KOSELLECK, 2006). Assim, acontecimentos ao longo do tempo, embora únicos, apresentam diversos carácteres comuns.
Logo, após aproximadamente um século depois de uma das mais violentas epidemias de varíola, o mundo inteiro conheceu o vírus Covid-19, que trouxe junto uma catastrófica pandemia. E, após a descoberta da vacina, um aumento dos debates acerca da vacinação obrigatória, em diversos países do mundo, assim como no Brasil, com a consequente instauração de novos movimentos antivacinação.
Desse modo, movimentos como estes e situações fáticas do dia-dia levaram ao questionamento que realmente interessa ao direito: a obrigatoriedade da vacina no Brasil. Há quem sustente que não existe a possibilidade de o processo de imunização ser obrigatório, com fundamento no art. 15 do Código Civil Brasileiro, que cita ipsi litteris:
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a
tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. (BRASIL, 2002).
Ocorre, no entanto, um gigantesco equívoco, embora seja fato que o referido dispositivo tenha como pressuposto a concordância do paciente para a realização de tratamentos e cirurgias, sustenta SCHREIBER, Anderson et al. (2021), que mensurado junto ao bem comum, esse dispositivo é interpretado no ordenamento de maneiro distinta.
Somente em casos excepcionalíssimos, resultantes da ponderação com outros interesses constitucionalmente protegidos, poderá haver a submissão de pessoa a tratamento médico compulsório. É o caso das campanhas de vacinação obrigatória para prevenir epidemias ou, ainda, da internação compulsória imposta judicialmente a criminosos que sofrem de certos distúrbios psiquiátricos, instituídos com foco na tutela do direito à saúde do próprio paciente e da coletividade. (Schreiber, Anderson et al., 2021, p. 113).
4. INTERESSE INDIVIDUAL OU INTERESSE COLETIVO?
Diante disso, vê-se que o ordenamento brasileiro entende que o fito da vacinação consiste na proteção do direito à saúde tanto na esfera do direito individual, quanto na esfera do direito coletivo e social, momento em que o processo de imunização busca sobretudo o bem comum.
Nessa meada, para compreender a existência de uma imposição estatal acerca do processo de vacinação, é necessário considerar requisitos como a proporcionalidade na aplicação e sopesamento entre o direito individual e coletivo com o fim de evitar que determinada restrição a direitos fundamentais como, por exemplo, a liberdade, tome dimensões desarrazoadas.
Por isso, faz-se tão indispensável a distinção entre interesse coletivo ou público e interesse individual. De maneira mais simplória, o primeiro se refere a interesses da comunidade que, no entanto, não estão amparados por direitos fundamentais, pelo menos não em sua inteireza. Enquanto interesses individuais são, na maioria das hipóteses, garantidos por direitos fundamentais.
Via de regra, não existe supremacia do interesse público em detrimento do interesse individual. Porém, quando não existe esse amparo, no lugar do interesse individual se sobrepõe o interesse coletivo, que será ordenado por meio do denominado dirigismo estatal.
Entende-se com o que foi pesquisado e nos entendimentos do Supremo Tribunal Federal e de outros autores, que na atual conjuntura, não há possibilidade de colocar o direito, a segurança da coletividade em conflito à liberdade individual. Dessa maneira, não é possível que a vontade, a escolha de um, interferir e atentar contra a saúde de um todo. Considera-se como fomentado pela ministra Rosa Weber que devem ser utilizados os meios possíveis para a preservação da vida humana, desse modo, a vacinação compulsória seria contemplada (CALDEIRAS, 2021, p. 17)
É nesse sentindo que a vacina em crianças, na legislação brasileira, ganha ares de obrigatoriedade, conforme o art. 14, § 1º c/c art. 249, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Com essa imposição, o legislador buscar, por meio de uma ação positiva, determinar uma política sanitária preventiva de doenças. E, por essa razão, a desobediência ao dispositivo pode até mesmo acarretar responsabilização legal.
5. CAMINHO PARA O ALCANCE DO INTERESSE COLETIVO
Como dito, trata-se de uma hipótese de sobreposição do direito e interesse coletivo sobre o interesse individual, pois a omissão quanto à imunização, especialmente de crianças, não afeta somente a órbita individual. Afinal, para que a vacina de fato gere seus efeitos, é necessário que em uma primeira etapa ocorra a adesão do indivíduo, e só posteriormente, como consequência, o resultado pode ser a proteção da comunidade, a chamada “imunidade de rebanho”.
Malgrado esses sejam os objetivos, os efeitos positivos não são tão facilmente atingidos, pois necessitam da adesão social, o que acontece apenas de duas formas: por meio do voluntarismo individual ou por meio do dirigismo estatal. No primeiro caso, nem sempre há de se contar com o voluntarismo, afinal como visto, o livre-arbítrio possibilita movimentos contrários.
É, nesse sentido, o dirigismo estatal em último caso que gera maiores efeitos, o que não significa também ser incontestável. A exemplo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal rejeitou por unanimidade recurso que pretendia desobrigar a vacinação em crianças. Em sua negativa, o Supremo Tribunal firmou seu posicionamento no dever e legitimidade do Estado, diante de tamanha exceção, de exigir que a população seja vacinada compulsoriamente, sustentando o interesse coletivo da saúde.
Ressalva-se que essa obrigatoriedade quanto às vacinas não podem ocorrer de qualquer maneira, com abuso de violência física ou outras medidas extravagantes e repressivas, como as que ocorreram para desencadear a Revolta da Vacina. Contemporaneamente, o direito se baseia na supremacia constitucional junto aos seus valores e princípios moldados a assegurar a dignidade humana.
Ocorre que todos os direitos fundamentais ligados à autonomia do indivíduo são condicionados à sua existência (direito à vida). Dessa forma, “a interpretação que se faz é que as normas de regência buscam garantir a saúde do indivíduo e, por consequência, de toda a população, sendo, portanto, algo acima da escolha pessoal, por envolver a diminuição da exposição ao risco e ao contágio de determinadas doenças e ainda evitar o reaparecimento de doenças consideradas erradicadas”, o que torna impossível a harmonização desses interesses, devendo o judiciário fazer prevalecer a obrigatoriedade da vacinação, tanto do indivíduo, quanto das crianças e dos adolescentes. (SCAFF, 2020, p. 6).
6. CONCLUSÃO
Infere-se, portanto, a possibilidade de obrigatoriedade da vacina no ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente, para tanto, o estado aplica seu “poder de polícia” por meio de multas e demais medidas conscientizadoras, sendo, por exemplo, a vacinação requisito para viagens ou mesmo para segurança do trabalho, havendo, ainda, nesse último caso, a possibilidade até mesmo de demissão por justa causa (CLT, art. 158). Trata-se, porém, de uma situação que ainda emerge discussões de grandes complexidades. Espera-se, sobretudo, que o Brasil relembre do desenrolar da história, para que não recaia sobre os mesmos erros.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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